27 julho 2009

UM PAÍS DE "FILHOS DA MÃE"

Não se ofenda. Esse é o título do prefácio de um livro que será publicado no fim de agosto, e divulgado em Buenos Aires, num congresso importante de sociologia.

A autora do livro Em nome da mãe – o não-reconhecimento paterno no Brasil, Ana Liese, é filósofa e socióloga.

Ela é também consultora de um documentário que dará muito o que falar. O filme, Nada sobre meu pai referência ao Tudo sobre minha mãe, do espanhol Almodóvar – é uma realização de Susanna Lira, 34 anos.

Na foto ao lado, Susanna está com Vanderson Feitosa, montador de cinema de 25 anos, e uma amiga dele, Arlete. O pai de Vanderson mora na esquina de sua rua, sempre morou ali, é vizinho. Mas nunca o reconheceu. Todos sabem da história na comunidade em São Paulo. Sua mãe já morreu. A proximidade e a distância do pai angustiam Vanderson, um rapaz bonito e talentoso.A cada ano, 700 mil crianças nascem no Brasil de “pai desconhecido”. São filhos de homens que não quiseram reconhecê-los. Recusaram-se a dar seu sobrenome. Quase 30% dos brasileiros não sabem quem é seu pai – ou até sabem mas não conseguem que o pai os reconheça no nome e no afeto.

As histórias de filhos de pai desconhecido mostram uma dor que não acaba nunca.

“Não será um filme de protesto contra o pai desertor”, diz Susanna. “Mas um convite amoroso e poético para que ele reconheça seu filho e viva plenamente essa paternidade. É como se eu dissesse ‘Olha o que você está perdendo’. Vou contar histórias de amor que querem e podem ser vividas”.

Susanna já entrevistou gente em cinco cidades brasileiras. E viu e ouviu o que sabemos: a ausência paterna contribui para a criminalidade juvenil.

Cerca de 80% dos jovens infratores não têm pai na certidão de nascimento, diz Susanna. Ela entrevistou meninas infratoras, meninos da periferia. Ficou claro que, com a sobrecarga das mães solteiras que trabalham fora o dia inteiro, o jovem sem pai é muito mais vulnerável ao desvio ou à delinquência.

“A prioridade de meu filme será a questão do afeto. E a valorização da figura paterna, que ficou tão fragilizada num mundo onde nós, mulheres, ficamos mais fortes e auto-suficientes. A abordagem será a mais delicada possível”.

Ela continua atrás de histórias assim e pediu para publicar aqui seu e-mail se alguém tiver um depoimento a dar para o filme: susannalira@modooperante.com.br. Os depoimentos precisam ser assumidos. Susanna não quer tratar do assunto nos bastidores ou nas sombras. “Chega de falar sussurrando sobre o não-reconhecimento paterno”.

Por que você decidiu fazer esse filme, Susanna?

Susanna Lira - Minha filha de 12 anos foi desenhar a árvore genealógica na escola e começou a perguntar quem era o avô materno. Ela tinha todos os nomes do lado da família do pai. Da mãe, havia brancos. Sou filha de pai desconhecido, mas isso nunca foi uma grande questão para mim.

Meu pai era estrangeiro, equatoriano, minha mãe e ele ficaram dois meses juntos, ele tinha 19 anos e era envolvido com política,. E o nome dele nem devia ser verdadeiro. Ele chegou a dar dinheiro para minha mãe abortar. Ela não quis. Minha mãe sempre me contou tudo, desde que eu tinha dois anos. Nunca senti trauma, mas havia muita estrutura afetiva em casa. Decidi fazer o filme quando vi a insistência de minha filha e percebi que essa lacuna pode aparecer lá adiante. Cheguei a procurar meu pai no Equador mas o nome dele não existe em lugar nenhum.

Você não se ressentia do documento sem nome do pai? Não. Olha, eu me construí com a falta desse pai. E sou divertida, engraçada. Porque cresci num universo de mulheres fortes, como nos filmes do Almodóvar. Mas reconheço que essa não é a regra. E me surpreendi. Encontrei gente de todas as idades e todos os níveis sociais em frangalhos por não saberem quem é seu pai. São feridas abertas pela ausência paterna.

Você acha que as mulheres têm responsabilidade na forma com que a sociedade enxerga o pai? A figura do pai foi totalmente fragilizada. A gente conseguiu conquistar um espaço forte. Lógico que eu nunca vou culpar a mulher, se tantos homens preferiram se ausentar. Mas os filhos muitas vezes culpam a mãe, acham que não foi feito tudo para encontrar o pai e convencê-lo a reconhecer. 80% dos menores infratores não têm pai na certidão de nascimento. Um preso adulto no Rio de Janeiro comparou a vergonha de estar preso à vergonha de não ter pai. Entrevistei adolescentes em São Paulo, meninas infratoras em Porto Alegre. Mas o foco não é só criminalidade. Desde que fomos criados como sociedade, existiu a figura do filho bastardo. Primeiro foram os portugueses com as índias, depois os senhores de engenho com as escravas negras. Esse comportamento é histórico, de abandonar a mulher. Ainda há o pai que reconhece, mas relega para a mulher ou a ex-mulher os principais cuidados com a família, o acompanhamento efetivo do crescimento do filho. Continua sendo uma paternidade ausente.

Algumas mulheres acham que se bastam e não precisam do homem para educar o filho? Vou ter muito cuidado pra tratar com isso. Mulheres na faixa dos 40 que decidem fazer produções independentes estão no direito delas, mas precisam saber que, dependendo de como agirem, elas serão cobradas por seus filhos. O filho tem direito de saber o nome do pai.Como sou mãe, eu tento me colocar no lugar delas. Eu me separei. Tenho um relacionamento estável há muito tempo. Tive sorte e minha filha tem dois pais. Admiro as que desafiam tudo para viver a experiência do amor incondicional de mãe, mesmo sem um parceiro para ajudá-las. Mas é mais difícil do que se pensa. Entrevistei a mãe de um garoto de 13 anos que tinha parado de trabalhar e namorar para cuidar dele. É um peso para todos. Se a mãe tem mais estrutura, mais posses, se organiza, o filho faz terapia. Nas periferias, a ausência paterna chega a quase 70%. Uma luta. A mãe solteira trabalha muito fora. Esse menino fica na rua, vulnerável, à mercê de tudo. As mães pobres são as mais orgulhosas. Dizem sobre o homem que as abandonou: “Não quero ele pra nada”. Passam fome e dizem que não precisam do cara pra nada. Mas nossas necessidades não são as de nossos filhos. Um menino de 13 anos, em Porto Alegre, criado por uma mãe guerreirona que faz tudo para suprir suas necessidades afetivas e financeiras, me disse: ‘Queria meu pai pra jogar bola comigo. Como meus amigos’.

E quando a mãe contribui para a ausência do pai? Existe todo tipo de situação. Em números totais o fenômeno principal é muito mais o abandono paterno, mas há casos de egoísmo da mãe. Conheci um homem que só aos 50 anos conseguiu arrancar da mãe o nome do pai. Foi procurá-lo e soube que ele tinha morrido havia três anos. Caiu em prantos. Mesmo assim, esse homem, um corretor de imóveis, se aproximou da família paterna, foi aceito e mudou todos os seus documentos, até a carteirinha de sócio do Flamengo, a certidão de casamento da filha, os documentos da neta. Tudo para incluir o sobrenome do pai.

A mãe dele tinha engravidado do filho da patroa, um rapaz, e era empregada doméstica. Como foi humilhada e expulsa da casa por isso, prometeu a si mesma que nunca falaria o nome dele para o filho. Era uma enorme mágoa. Acontece que o rapaz rico tinha mesmo se apaixonado pela moça, e passou a vida também procurando esse filho.

Quando casou, explicou que tinha um filho e que um dia ele poderia aparecer. Foi o que aconteceu. Quando esse corretor completou 50 anos, pediu mais uma vez à mãe que revelasse o nome de seu pai como presente de aniversário. E ela contou. Mesmo não tendo conhecido seu pai pessoalmente, ele me disse: ‘Agora sou um ser humano pleno, de verdade’. Simplesmente por ter recuperado a imagem do pai e o sobrenome.

Existem ações do governo, do Ministério Público, em busca desses pais? O MP, junto com as prefeituras, tenta reduzir essa ausência, e trazer o pai para perto do filho. Algumas cidades têm uma experiência muito importante, como São Sebastião do Caí, no Rio Grande do Sul.

Na hora da matrícula da criança na escola, se não existe o nome do pai isso é comunicado imediatamente ao Ministério Público. É um projeto-piloto de paternidade responsável. Para conscientizar o homem sobre a importância da figura paterna, a falta que ele faz. Isso é triste, porque, quando o processo chega ao exame judicial de DNA, é difícil recuperar a questão da confiança e do amor. O dinheiro entra na conta. Mas e a convivência? E a parte lúdica da paternidade?

Eu também conversei com a filósofa e socióloga Ana Liese, que confirmou em seu doutorado como é árdua a busca do reconhecimento da paternidade. Ela falou por telefone, de Brasília. “Se o pai se nega a dar o nome na hora do registro, só um em cada 10 reconhecerá aquele filho espontaneamente em toda a vida”.

E mesmo sob pressão do Ministério Público, só 30% dos homens acabam reconhecendo. “Além de ser injusto com o filho, o não-reconhecimento representa enorme sobrecarga sobre a mãe. Especialmente para a mais pobre, que não conta com uma rede de proteção. Muitas mulheres lúcidas e criativas acham que dão conta de cuidar sozinhas das crianças. Mas não dá. Não é justo que só as mulheres tenham essa responsabilidade e acabem em dupla, tripla jornada. Não se faz mágica com o tempo e a energia”.

A presença do pai é desejada com intensidade pelos filhos e os depoimentos, sempre fortes e surpreendentes, mostram isso claramente.

No segundo domingo de agosto, vamos comemorar o Dia dos Pais. Nesse dia, milhões de brasileiros não terão a quem dar um presente, a quem homenagear, um rosto para beijar ou sequer lembrar.

Na sua certidão, provavelmente estará escrito pai desconhecido, pai ignorado ou simplesmente haverá um branco. Um branco no papel, um branco na memória afetiva, um branco que não cicatriza.

Um comentário:

  1. Excelente texto, e esta é a estória minha e da minha filha, cujo pai não a quis reconhecer como flha e rejeitou-a desde pequena. Minha filha teve uma infência equilibrada porque contei com o suporte dos meus pais. A partir dos três anos de idade, os meus pais ficaram condoídos da minha luta e dela, pela sobrevivência em ambiente hostil de creche. Através da minha mãe ela teve o amparo de cuidados com a saúde e alimentação. Através do meu pai, houve uma verdadeira substituição da figura paterna.
    Tudo o que ela fazia no dia dos pais era para o meu pai, seu avô.
    Movi uma ação judicial para reconhecimento de paternidade, o que foi resolvido, mas o carinho afeto e, porque não dizer, ajuda financeira, esses nunca vieram.
    Sou engenheira, tenho boa condição financeira, sempre trabalhei muito para não perder o meu emprego porque sabia que não haveria outra fonte de sustento.
    Hoje, aos 50 anos, fiquei desempregada. Mas como a minha filha disse, Deus ampara porque muitos dependem do meu apoio para sobreviverem. E assim foi, com cronologicamente um mês de desempregada, no meio da crise que o mudo passa, já estou em outra grande empresa.
    A vida é sacrificada, há 7 anos morando longe de casa. Atualmente, moro em BH e a minha filha fica em Salvador por causa da Universidade.
    Minha assistência médica é local e a empresa está estudando a minha situação para fazer um convênio direcionado a ela.
    Desde abril, visualizando essa possível situação, solicitei ao pai que a incluísse na assistência médica dele. Até hoje estou esperando...
    Enfim, minha vida foi de renúncia à própria vida, mas a recompensa está no resultado de uma filha equilibrada, estudiosa, determinada, alegre e feliz. Saímos vitoriosas dessa!

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