20 dezembro 2009

Sônia Drigo - Presas por “quase nada”


O trabalho da advogada Sônia Drigo é tema do documentário “Bagatela” – que trata de crimes
insignificantes, como furto de objeto de valor irrisório – dirigido por Clara Ramos.


O filme conta histórias de mulheres que são presas e passam anos na cadeia por roubar (ou tentar) um pacote de bolacha, um creme, um pedaço de queijo. Sônia defende essas
mulheres de graça desde 1997 e afirma: “O que dá a sensação de impunidade é quando se solta quem matou uma pessoa e se prende quem tentou comer chocolate ou passar óleo no corpo”.

1 – Gostaria que contasse um pouco sobre seu trabalho. É voluntário?
Sim, é voluntário.
Trabalho com a questão da mulher presa desde 1997, quando fiz parte de um grupo formado por integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, advogados e estagiários para atender denúncias de tortura na penitenciária feminina do Tatuapé (em São Paulo) – fechada em 2005.
Desse grupo surgiu a idéia de fundar o ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. Em 2001, o ITTC e outras entidades de direitos humanos formaram o Grupo de Estudos e Trabalhos Mulheres Encarceradas. Em 2004, conheci casos de mulheres presas por furto de comida, roupas de bebê, lápis de olho, óleo de amêndoas.
E passei a fazer habeas-corpus e defesa para as que me chegavam. São mais de 400 casos.

2 – Muitas mulheres vão presas por pequenos furtos?
Todos os dias mulheres são presas por “quase nada”. Homens bem menos.
Outro dia, recebi uma moça que foi presa por tentativa de furto de paçoca, azeitona e temperinho, no total de R$ 15.

3 – O Governo se defende dizendo que as penas alternativas já superam as de reclusão. É verdade?
Isso é um engano na interpretação dos dados.
Eles consideram a aplicação da pena alternativa nas sentenças, mas não constatam as prisões em flagrante em que as pessoas são mantidas presas durante o processo, mesmo sabendo que no final das contas poderá cumprir pena em liberdade ou prestando serviços.
A grande ilegalidade está aí.

4 – As penas alternativas são aplicadas quando a pessoa passou um tempo presa?
Muitas são condenadas a cumprir pena em regime semiaberto, mas são impedidas de apelar em liberdade e continuam nas cadeias até o recurso ser julgado.
Quando a sentença de regime semiaberto se torna definitiva elas são soltas, mas cumpriram a pena no regime fechado, sem direito a trabalho, estudo.

5 – No documentário parece que os juízes ainda têm visões diferentes sobre os crimes de bagatela?
Vai da sorte de cada uma.
Se o processo for distribuído para uma vara criminal que tenha um juiz como um dos entrevistados no documentário, será caso de condenação pois o juiz deixa claro não ser favorável à aplicação de penas alternativas e que a prisão é o melhor remédio.
Por outro lado, se o processo for distribuído para uma vara que tenha um juiz que pense o contrário, a pessoa terá a dignidade respeitada e os princípios da insignificância aplicados de início.

6 – O que deveria ser feito?
Em primeiro lugar deixar a prisão para as exceções que existem na lei penal, como risco de fuga, perseguição às testemunhas, tumultuar o processo, que são os requisitos da prisão preventiva. Julgar rápido, mas com qualidade técnica tanto dos defensores quanto dos promotores porque no processo muitas vezes não se olha para aquela pessoa que está sendo julgada.
Não se sabe nada da vida dela, não se preocupa em saber e julga-se de forma diferente casos idênticos. Isso é o que dá a sensação de impunidade, quando se solta quem matou uma pessoa e se prende quem tentou
comer chocolate.

7 – Onde está a falha?
Na qualidade dos operadores do direito: juízes, promotores e defensores públicos e particulares. Falta vocação, maturidade, compromisso.
Sobra preconceito, inexperiência, desconhecimento de direitos humanos e das questões sociais. Quem é preso em flagrante poderia ter o seu caso analisado por um juiz em menos de 48 horas. Em tese, num caso de insignificância, o juiz poderia mandar soltar imediatamente. Não faz.
O promotor também poderia pedir a soltura por entender que não põe em risco a sociedade.
Não pede. Ao contrário, sempre discorda de qualquer pedido de benefício.
O defensor poderia pedir a liberdade provisória para que a ré pudesse responder o processo livre. Não pede.
A superlotação mostra que há pessoas presas que não deveriam estar.

8 – Qual o perfil de quem comete esses pequenos furtos?
O perfil é sempre o mesmo: baixa escolaridade, sem profissão definida, jovens, com filhos.
Acho que não resistem. Não são violentas.
Vão ficando mais sabidas (no mau sentido) com o passar do tempo. Arriscam. Não se preocupam com as câmeras internas, sensores nas portas, etc.
Simplesmente não resistem à vaidade, à vontade de comer uma picanha, usar uma lingerie diferente ou um brinquedo de bebê.
São sempre pobres e na maioria das vezes usuárias de drogas.

9 – Como você escolhe os casos que vai defender?
Não escolho, os que chegam ao meu conhecimento eu faço.
Ou me trazem a lista, ou eu anoto quando visito penitenciárias.
Tento entrar logo com habeas-corpus, porque não se precisa de procuração da presa, às vezes é preciso entrar no processo e aí assumo a defesa toda.

10 – O documentário repercutiu?
Ele teve sua pré-estreia no Cinesesc em São Paulo, no 15º Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais em agosto e na Associação dos Advogados de São Paulo.
As faculdades de direito têm demonstrado interesse, o que é positivo.

andrea.dip@folhauniversal.com.br

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