20 março 2010

Alucinação assassina: Santo Daime



Tomar o chá alucinógeno da seita Santo Daime quando se tem um transtorno psíquico, afirmam especialistas, é o mesmo que jogar gasolina sobre um incêndio. Tudo indica que foi o caso de Cadu, o assassino do cartunista Glauco e de seu filho Raoni.

Nos últimos três anos, Cadu, assassino do cartunista Glauco, de 24 anos, vinha exibindo claros sinais de que estava sofrendo de distúrbios psíquicos.
Esse período, segundo seu pai, Carlos Grecchi, coincide com o tempo que o filho começou a frequentar o Céu de Maria, igreja fundada por Glauco e pertencente à seita Santo Daime, que mistura elementos do cristianismo, espiritismo e umbanda e prega o consumo de um chá com efeitos alucinógenos como forma de "atingir o autoconhecimento e a consciência cósmica".

O comportamento de Cadu, diz Grecchi, começou a se transformar quando ele passou a fazer uso da dimetiltriptamina (DMT), o princípio ativo presente na beberagem consumida por adeptos da seita.
Por diversas vezes, tanto Grecchi como os avós de Cadu ouviram o jovem dizer que era a reencarnação de Jesus Cristo.
Também por diversas vezes os parentes flagraram o jovem rezando, numa ocasião debaixo de chuva forte, para plantas que ele dizia serem reencarnações de entidades religiosas.

CULTO E "MIRAÇÃO"
A comunidade Céu do Mapiá, no Acre, abriga a sede da seita (à dir.). Ao lado, culto no Céu de Maria.

Quem vai tem de beber o chá


Às tentativas de levá-lo a um psiquiatra ou a uma clínica de internação, Cadu reagia com determinação e pavor.
Dizia que não queria ficar como sua mãe, portadora de esquizofrenia.
A esquizofrenia faz com que suas vítimas sejam acometidas por delírios e alucinações, em surtos que duram, no mínimo, um mês.
Vozes e seres imaginários solapam a percepção da realidade.
Falsas ideias de perseguição e possessão tornam a vida um pesadelo contínuo.
A esses surtos se intercalam períodos de uma apatia profunda, marcados por lentidão de raciocínio e desordem de pensamento.
O risco de desenvolver essa psicose sobe de 1% para 13% no caso de pessoas cujo pai ou mãe sofre do transtorno.
Na família de Cadu, além da mãe, também uma tia-avó foi diagnosticada com esquizofrenia.
Seu pai diz estar convencido de que o filho herdou a doença (veja entrevista abaixo).
E começa aqui a parte em que a tragédia do Céu de Maria atravessa o campo do imponderável para adentrar o espaço aterrador das desgraças que talvez pudessem ter sido evitadas.

Grande parte dos portadores de esquizofrenia consegue levar uma vida razoavelmente normal desde que sob tratamento – que, além de medicação, inclui manter distância de certas substâncias. Como chás alucinógenos, por exemplo.

A DMT aumenta a concentração no cérebro de três neurotransmissores: a serotonina, a noradrenalina e a dopamina.

Como os portadores de esquizofrenia têm um aumento na atividade da dopamina, a sobrecarga dessa substância pode fazer com que eles percam a noção de realidade e tenham alucinações – estado que pode continuar mesmo depois que o efeito da droga termina.
Em outras palavras, permitir que portadores de psicoses como a esquizofrenia bebam o chá da seita Santo Daime equivale a jogar gasolina sobre uma casa em chamas.
Tudo indica que foi exatamente o que os seguidores da seita fizeram durante os três anos em que Cadu frequentou o local.

A DMT é proibida em quase todo o mundo.
Ao lado do LSD e da mescalina, ela aparece na lista de drogas controladas na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas da Organização das Nações Unidas.
Essa lista é seguida por 183 países, o Brasil incluído.
A convenção, entretanto, não proibiu plantas ricas na substância, como a erva-rainha ou chacrona, que dá origem à beberagem do Daime.
Isso permite a interpretação de que apenas a substância é proibida e a planta, que tem pequena concentração dela, não.
No Brasil, em 1992, graças a uma campanha liderada por "ayahuasqueiros", o Conselho Federal de Entorpecentes liberou o consumo do chá daimista "para fins religiosos".
Foi o primeiro de uma sucessão de erros que culminou com a consagração do chá como "bebida sagrada", título concedido à substância alucinógena pelo estado brasileiro em janeiro passado.

O advogado criminalista Fernando Fragoso considera a interpretação casuística.
"Uma droga não deixa de ser droga se for consumida no meio de um ritual. A substância é lícita ou não é", diz.

A Associação Brasileira de Psiquiatria também já se manifestou contra a liberação do chá, sob o argumento de que não existem estudos suficientes para descrever em profundidade a ação no cérebro da DMT presente na beberagem.

De acordo com a família de Cadu, a última vez que ele ingeriu o chá foi por ocasião do Ano-Novo. Nesse período, conforme afirmou à polícia, Cadu já estava traficando maconha com o propósito de juntar dinheiro e comprar, por 1 900 reais, a arma com que matou suas vítimas.
O propósito seria obrigar o cartunista e líder religioso a dizer a sua família que seu irmão mais novo, Carlos Augusto, seria a reencarnação de Jesus Cristo.
A mãe de Cadu, Valéria Sundfeld Nunes, mora sozinha no bairro do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo, mas é assistida de perto pelos pais, que a visitam duas vezes por dia.
Ela trabalha em uma ótica, mas está há três meses afastada, segundo o patrão, por problemas de saúde.
O avô de Cadu conta que ela reagiu à notícia da prisão do filho com apatia: "Parecia que haviam dito que ele tinha ido ao supermercado".









As origens da seita Santo Daime estão ligadas à descoberta, pelos seringueiros do Acre, da ayahuasca, como os índios que viviam na Floresta Amazônica no século XIX chamavam o chá.
Um dos primeiros a consumir a bebida, o seringueiro Raimundo Irineu Serra teria tido uma visão de Nossa Senhora, na qual ela ordenava que ele passasse a chamar o chá de santo-daime (a palavra viria da exortação "dai-me luz") e criasse uma doutrina em torno dele.

O ritual criado por Irineu e replicado em todo o país se desenrola da seguinte forma: o interessado em provar da ayahuasca passa por uma breve entrevista para que os "fardados", os daimistas graduados, questionem suas motivações.
Apenas em algumas igrejas se pergunta ao interessado se ele tem problemas psíquicos.
Uma vez aceito, o calouro daimista pode participar do culto.
Os participantes se sentam formando um círculo, os homens separados das mulheres.
Cantam hinos de letra singela e repetitiva, que misturam referências cristãs e espíritas.
Depois de algumas músicas, chega o momento do primeiro chá.
As pessoas se organizam em fila e tomam meio copo do alucinógeno.
Em geral, isso se repete quatro vezes.
O culto pode durar até doze horas.
Só recebem autorização para uma saída rápida do salão os que precisam vomitar, ocorrência que costuma afetar os daimistas de primeira viagem.
Hoje, a seita tem mais de 100 igrejas em todo o país.
Só a Céu de Maria tem 11 000 adeptos que tomam regularmente a DMT.


"Ele só falava da igreja"
Alexandre Schneider

FOI O DAIME
Carlos Grecchi, o pai do jovem que matou Glauco: "O chá foi o fator desencadeante"

O comerciante Carlos Grecchi, pai de Carlos Eduardo, o assassino confesso de Glauco e Raoni, atribui o agravamento do estado psíquico de seu filho ao consumo do santo-daime.
Na última quinta-feira, Grecchi, que vive em Goiás, falou a um grupo de jornalistas no escritório de seu advogado, em São Paulo.

DAIME E ESQUIZOFRENIA
"Para mim, o chá que Carlos Eduardo tomava no Céu de Maria foi o fator desencadeante de um surto psicótico – que, rezo a Deus, não se transformará numa esquizofrenia profunda.
Eu sei como é um surto psicótico, porque convivi com a mãe dele, que tem esquizofrenia.
O exame toxicológico feito nele deu positivo para maconha.
Vocês acham que alguém que fuma maconha teria ficado daquele jeito?
Agora, na Polícia Federal, ele não está usando drogas e continua alterado.
Que droga teria um efeito tão prolongado?"

A FAMÍLIA "ACHOU LEGAL"
"Quando meu filho contou que estava frequentando a igreja, a família até achou legal.
Mas, pouco tempo depois, ele começou a querer doutrinar os amigos.
Só falava da igreja, chegou a ponto de rezar para as plantas, falando que elas eram encarnação de Jesus... Eu falei que ia ter de interná-lo.
Ele se ajoelhou e pediu pelo amor de Deus para não interná-lo, porque não queria ficar igual à mãe"

ELE TAMBÉM EXPERIMENTOU
"No ano em que ele passou a frequentar a igreja, eu fui até lá e tomei o chá para saber o que meu filho estava tomando. É claramente alucinógeno. Você fica viajando, fora da realidade"


UM PEDIDO À IGREJA
"Tentei convencê-lo a não ir mais ao Céu de Maria.
Em 2007, fui até lá pedir pessoalmente para que não o deixassem mais tomar o chá.
O Glauco disse que não podia fechar as portas para ninguém.
Minha mãe, que tem 80 anos, também foi reclamar, mas ofereceram o chá para ela"

O ÚLTIMO CHÁ
"No réveillon, meu filho foi até o Céu de Maria.
Ele me ligou quando tentava voltar para casa, dizendo que estava morrendo.
Eu o encontrei num estado lamentável, dentro do carro, em um barranco.
Ele estava tremendo, suado, e havia urinado e defecado nas calças. Segurava o celular.
Eu tinha ligado umas vinte vezes, e ele não conseguia atender.
Levei-o para casa, e ele disse que havia exagerado um pouco no tal do chá"

Com reportagem de Marcelo Bortolotti, Igor Paulin e Thiago Mattos/ VEJA

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