03 outubro 2010

Elenira Mendes, Filha do seringueiro Chico Mendes fala sobre a vida após o assassinato do pai

Em 1988 os olhos do mundo se voltaram para a pequena cidade de Xapuri, no Acre, região Norte do Brasil.
No dia 22 de dezembro daquele ano, o assassinato do seringueiro e ambientalista Chico Mendes marcava a história.
Hoje, quase 22 anos depois, a filha dele, Elenira Mendes, de 26 anos, conta como foi a infância convivendo de perto com os familiares dos assassinos de seu pai, sua relutância em aceitar o legado deixado por ele e como resolveu dar sequência à luta do homem simples, que aprendeu a ler somente aos 20 anos de idade e que se preocupava com questões ambientais e sustentabilidade mesmo antes dessas palavras fazerem parte do vocabulário popular.

Como foi a sua infância?

Olha foi um pouco difícil, porque quando mataram o meu pai, a imprensa do mundo inteiro veio para Xapuri (Acre). Mesmo sendo uma criança, havia uma especulação muito grande. Queriam saber como tinha sido, o que eu sentia. Cresci vivendo essa história. Minha infância foi um pouco conturbada por conta de tudo isso. A todo instante alguém estava relembrando a história e até hoje é assim, tenho que reviver, contar, mas hoje não me fere mais como antes.

Quais as lembranças que você tem do seu pai?

As únicas lembranças são do dia em que ele foi assassinado. Era começo da noite, ele foi tomar banho e lembro dele voltando pra dentro de casa já baleado (o banheiro era do lado de fora). Ele caiu, todo ensaguentado, tentou balbuciar o meu nome, mas não conseguiu.

O que será que ele queria me dizer? Me pergunto isso até hoje. Eu era uma criança, mas jamais vou esquecer. Nós ficamos ali ao lado dele e é sempre essa cena que vem à minha memória, mesmo após 22 anos do ocorrido, e jamais será apagada. Antes de ser assassinado, ele levou a mim e o meu irmão Sandino para dar uma volta de carro pela cidade de Xapuri. Era uma espécie de despedida acho.

Em algum momento você, sua mãe e seu irmão tiveram medo de serem assassinados também?

Sim, tivemos medo, porque a família do Darly (Darly Alves da Silva, condenado pelo assassinato de Chico Mendes) era muito presente em Xapuri. Cruzávamos com eles nas ruas. Por vezes eles passavam de carro em alta velocidade e a gente tinha esse temor sim de que pudéssemos ser vítimas também.

Mesmo com toda a repercussão que o assassinato do seu pai teve, vocês tinham algum respaldo da polícia, algum tipo de segurança?

Nenhuma. Então imagina o nosso medo. Se o meu pai, que tinha segurança, não foi poupado, aconteceu tudo aquilo com ele, imagina com a gente? Por isso, quando eu tinha 9 anos de idade nos mudamos para a capital do Acre, Rio Branco, onde vivo até hoje.

Na adolescência a gente passa por muitos conflitos. E no seu caso, como foi esse período, já que você vinha de uma infância onde sofreu uma grande perda e um grande trauma?

Eu confesso que era revoltada. Passei por conflitos sim, principalmente porque eu atribuía a morte do meu pai a todo esse movimento ambientalista, sindical. Eu acreditava que essa questão, esse trabalho desenvolvido por ele, havia contribuído para a sua morte e eu queria estar bem distante de tudo isso.

Durante muito tempo ninguém ouviu falar em Elenira Mendes. Por que demorou tanto para aceitar o legado que seu pai deixou e como decidiu abraçar essa causa?

Por volta dos 18, 19 anos, eu revi algumas fotos de quando eu era criança, e numa delas estava uma dedicatória do meu pai: “És a vanguarda da esperança. Elenira, darás continuidade um dia à luta que teu pai não conseguirá vencer.” Foi nesse momento que eu despertei para o fato de que existia algo muito maior que a morte dele. Ele não havia lutado em vão. Ele estava consciente da missão que tinha e se havia morrido por essa causa é porque ela tinha um valor, e eu tinha que dar sequência, não podia deixar que toda a luta e morte dele fossem em vão.

E o que você fez exatamente?

A casa onde nós morávamos quando ele morreu tornou-se um memorial com pertences, condecorações, que ele recebeu em vida e pós morte. Desenvolvemos trabalhos numa casa de leitura e agora vamos disseminar o trabalho para outros locais de Xapuri. Outro projeto interessante é que a questão ambiental é um tema que tem chamado a atenção do mundo inteiro. Eu tenho uma filha de 6 anos e sempre foi difícil explicar para ela quem havia sido o avô dela. E como ela me perguntava muito, surgiu a ideia de contar e absorver essa história sem chocar tanto, criando uma história em quadrinhos, onde as crianças vão conhecer a história do Chiquinho, o Chico Mendes numa versão infantil, saber quem ele foi e que como criança ela pode fazer algo pelo meio ambiente.

Como é lidar com a saudade de uma pessoa que além de representar tanto para o mundo é também o seu pai?

É uma mescla de sentimentos. A saudade é algo que não dá para esquecer, toda hora tem alguém lembrando, trazendo a lembrança, tenho que falar a respeito dele. Mas tem o lado gratificante, de saber que ele foi um grande homem, que nada disso foi em vão. Que hoje a mensagem dele conseguiu ser ouvida no mundo inteiro. Hoje a gente enfrenta tantos problemas na questão ambiental no Brasil e no mundo inteiro, e era justamente sobre o que ele queria alertar a humanidade. Que se não cuidássemos da natureza teríamos problemas futuros. Ele sabia da importância da floresta, dependia da floresta para sobreviver. Muita gente naquela ocasião achava que ele queria impedir o desenvolvimento do estado, que na época era o desenvolvimento a qualquer custo, muito desmatamento. Mas o que ele queria, na verdade, era que se respeitasse a natureza. Hoje as pessoas veem a resposta da natureza, que é a resposta a tudo o que o homem causou.

Seu pai era um homem à frente do tempo dele?

Era o que ele era. Por mais que não tivesse o conhecimento cientifico, formal, ele tinha o conhecimento necessário, que era o conhecimento da floresta, e entendia como funcionava o ciclo natural das coisas. Até os 20 anos de idade meu pai era um analfabeto, um homem simples, mas era um homem sábio, que amava a floresta, a natureza.

Você tem um irmão, ele não se envolveu na causa do seu pai?

Ele ajuda na Instituição Chico Mendes, mas há uma resistência para falar sobre o nosso pai. Ele trabalha com a inclusão na comunidade, lida com pessoas da floresta e gosta muito do trabalho que faz. Quanto a falar de tudo o que vivemos, prefere ficar à parte. Ele é o reflexo da nossa própria história.

Quais são os seus planos de agora em diante?

Do lado pessoal pretendo me especializar em direito ambiental. Para o Instituto Chico Mendes pretendo que o personagem Chiquinho, da revista em quadrinhos, faça parte da rede de ensino, do universo infantil, assim como o Menino Maluquinho, do Ziraldo. Que seja um personagem que traga consciência para os futuros cidadãos do nosso país.

Por Elliana Garcia/ Foto: Gabriel De Angelis

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