25 maio 2009

"NÃO QUERO QUE O DEPUTADO CARLI MATE DE NOVO"

Na madrugada de 7 de maio, três dias antes do Dia das Mães, Christiane Yared, 49 anos, recebeu o caixão lacrado de seu filho de 26 anos, Gilmar Rafael Yared. Nunca viu o que restou dele após a brutal colisão, numa avenida de Curitiba, com o carro blindado do deputado Fernando Ribas Carli Filho, de uma família importante de políticos do estado do Paraná.

Já está provado, pelo exame de sangue, que o deputado estava embriagado na hora do acidente. Além disso, Carli Filho tinha perdido o direito de dirigir desde julho do ano passado. Tinha 130 pontos na carteira e 30 multas, 23 delas por excesso de velocidade.

A mãe de Gilmar, pastora evangélica e empresária, dona de uma firma de bolos e doces, falou a Ruth de Aquino, para o blog Mulher 7×7, de ÉPOCA, sobre os seus últimos 15 dias, de luto. Seu choro se mistura a seu principal motivo de viver: a batalha para que a verdade seja estabelecida, e a justiça seja feita. “Quero o deputado Carli Filho fora das ruas, senão ele vai matar de novo”, diz Christiane. “Seu caráter está formado. Ele não é uma criança”.

O que sua vida se tornou nessas duas semanas, depois de perder seu filho?
Christiane –
Eu não estou mais vivendo a minha vida. Hoje fui pela primeira vez ao local do acidente com meu esposo, comprei 26 rosas brancas (Gilmar tinha 26 anos), e fomos chorar, e nos ajoelhar. (neste momento, Chris – como é chamada – começa a soluçar e chorar ao telefone, e pede “desculpas”). Nos tiraram nosso pulmão, hoje a gente respira para os outros, para nossos outros filhos, para os filhos de nossos amigos, filhos dessas famílias todas que têm nos amado e consolado pelo Brasil todo. Eu nem chorei a morte de meu filho direito, porque se eu não agisse logo, ele é que seria “o drogado”, “o bêbado”, ele é que teria entrado na rua errada na hora errada.

Está provado que seu filho dirigia devagar na hora do acidente?
Christiane –
Meu filho estava a 30 quilômetros por hora, a perícia nos avisou hoje. Os pneus estavam intactos. O carro do deputado Carli vinha a 190 quilômetros por hora, cortou o carro do meu filho ao meio, cortou o tampo do carro, cortou a cabeça de meu filho, que foi encontrada a 40 metros de distância, um filme de terror. Você pode imaginar as pessoas procurando no escuro, à 1h da madrugada, a cabeça de alguém? Um rapaz enorme, de 1m98? Foi um banho de sangue porque eles foram amassados pelo carro blindado e potente do deputado, um Passat alemão. O amigo de meu filho também virou uma massa humana. Do Gilmar, ficaram só os braços. Tudo muito triste, muito doído.

Hoje, sobre o que a senhora e seu marido mais conversam? Christiane A vida dos outros tornou-se o único sentido. Pensamos em vender tudo que temos para lutar pelos que ficaram. Temos a esperança de reencontrar nosso filho porque somos religiosos. Eu sou pastora evangélica, me converti há 14 anos. E também precisamos viver por nossos outros dois filhos, Danielle, de 29 anos, veterinária, e o Jonathan, 22 anos. Eles são uns amores, ela uma guerreira e ele, um tesouro. O Gil era a alegria, um raio de sol que entrava em qualquer lugar. Ele via a vida como um presente. Sorria e cumprimentava a garçonete, o pedreiro, o menino que pedia alguma coisa. Ele sempre tinha uma palavra para todos.

Como estão seus outros filhos após a perda do irmão? Christiane – Os dois estão engajados nessa luta, vai ter uma passeata grande no domingo em Curitiba, um manifesto a favor da vida às 10h da manhã. Caminharemos até o parque mais próximo, vamos fazer o culto, vamos agradecer por estar vivos. Vamos pedir que seja feita justiça, que não haja impunidade, porque, para cada família que perde alguém assim e a causa fica impune, trata-se de um crime hediondo.

Muitas pessoas têm se solidarizado com seu drama? Christiane – A cada dia, dezenas de pessoas entram no meu Orkut. Oitenta, 100 pessoas. Fora os que me telefonam. Um senhor me ligou da cidade em que o pai do deputado é o prefeito, Guarapuava, me avisando preocupado: a senhora está lidando com coronéis. Eu disse que estava tranquila, porque sou filha de um general, sou filha de Deus. Tenho um escudo, e as palavras não me ameaçam. Sou evangélica, mas católicos, espíritas, budistas, todos me abraçam, me consolam, é lindo porque para Deus não existe religião. Essa família brasileira é abençoada, esse povo brasileiro não tem igual no mundo. Religiões foram os homens que criaram. Sei que Deus está olhando para cá. As pessoas estão me sustentando em oração. Numa igreja em Mato Grosso do Sul, os membros estão em jejum há 12 dias. Pedem por nós.

Como a senhora soube da morte de seu filho? Christiane – Fui avisada na quinta-feira às 2h20 da madrugada, por dois agentes funerários na porta do condomínio de casas onde moro. O porteiro me acordou, me disse “vem aqui na portaria, é muito sério”. Achei que fosse um assalto. Altino, o porteiro, disse: “Infelizmente não é um assalto. Houve um acidente com o carro de seu filho.” Eu mesma liguei para a polícia: disquei 190, perguntando se era um trote. Me transferiram para o Corpo de Bombeiros. Ele tapou o telefone e disse para o colega: é uma das mães dos rapazes que faleceram. Eu não sabia a proporção do acidente até então. Me deram um caixão lacrado. Tenho uma firma que faz bolos, e fui até a firma trabalhar no dia seguinte, naquela agonia de alma, porque há coisas que só eu sei fazer. Quando me disseram que meu filho tinha sido degolado, quando soube da violência, foi como se me cortassem o corpo ao meio com a foice. E começaram a espalhar que meu filho era culpado. No domingo após o acidente, foi Dia das Mães. E eu queria dizer às mães que o presente que recebi do deputado foi a cabeça de meu filho.

Alguém da família do deputado entrou em contato com a senhora? Christiane – Ninguém entrou em contato, eu vi a mãe, Ana Rita, falando na TV que ela estava sofrendo, mas ela não pode mensurar a dor de uma mãe que perde seu filho assim. Arranca seus pulmões, não há ar suficiente no mundo para respirar. Sinto dores em regiões no peito como se faltasse uma parte do meu corpo. Uma pessoa como ela, altiva, ponderada, poderia me ligar e dizer que está orando comigo. Seu filho não é nenhuma criança, é um adulto de 26 anos. A única coisa que eu quero dela é que entenda que quando vivemos e participamos de uma sociedade, temos responsabilidades, e essa consciência é transmitida até uma certa idade. Ela pode se perguntar onde foi que errou. Talvez tenha faltado um “não” na vida desse rapaz. Vivia com carro de corrida. Era costumeiro correr daquele jeito. A família Carli é uma das grandes fortunas do Paraná. Agora, fica para nós juntar os cacos que não são pequenos. E meu filho ainda pegou um amigo, que pediu uma carona. A mãe do Carlos recebeu a notícia no dia do aniversário dela. Já pensou a cada ano, no dia de seu aniversário, ir ao cemitério?

Seu filho era conhecido como Gilmar ou Rafael?
Christiane
– Eu o chamava de Gilmarzinho, porque levava o nome do pai. Ele fazia piada comigo, me chamava de mãe mexicana por ter dado dois nomes a ele: Gilmar Rafael. É que eu amava muito também o nome Rafael, como ele era chamado pelos amigos. Meu filho dizia: ou você me chama de Rafael ou de filho. “Gilmarzinho é cômico”, falava, “olha só o meu tamanho”. Ele já estava um ano e meio morando num apartamento que comprei para ele. Arrumei tudo. Ele estava no segundo período de psicologia e faltava um ano para terminar jornalismo. Ele queria ser psicólogo para jornalistas, por achar que vocês enfrentam muita pressão na busca da verdade. Ia fazer um curso na Austrália e, na véspera do acidente, reuniu todos os amigos da universidade de Psicologia, levou salgados e bolo e se despediu, embora a viagem estivesse marcada para daqui a dois meses. Um mês atrás, ele falou uma coisa para mim. Mãe, eu tenho 26 anos e não experimentei drogas na minha vida. Esse mérito é seu, mãe. Ficou gravado na minha mente.

Que providências vocês tomaram para que o culpado pelo acidente seja punido? Christiane – Estamos com um criminalista sério, não comprometido com partido político nenhum, e aguardando a Justiça caminhar. Com passos lentos mas seguros. Estamos na mão do Ministério Público, clamando para o deputado Carli Filho perder o foro privilegiado e ir a júri popular. Eles querem amenizar a pena. Que fique como homicídio culposo, sem intenção. Mas como alguém com carteira suspensa pode estar dirigindo, bêbado, e naquela velocidade? Ainda por cima um parlamentar. O governador do Paraná mandou o jatinho do estado para levar o deputado para São Paulo, mas ele não corria risco nenhum da morte. Não teve um osso quebrado do pescoço para baixo. Problema mental nenhum. Um enfermeiro entrou para colher sangue no hospital e ele expulsou do quarto. Que coma é esse que inventaram? Fomos ao Conselho Regional de Medicina. Queremos saber que palhaçada é essa, que circo é esse que foi montado. Não somos idiotas, estudamos, ninguém está a fim de fazer justiça com as próprias mãos. Queremos que a verdade seja dita.

A senhora insistiu muito no exame de sangue do deputado, logo após o acidente, estranhando não ter sido feita dosagem alcoólica. Christiane – O resultado do exame de sangue veio a público só 12 dias após. Os médicos estão dizendo que esse sangue agora não é dele. Se o sangue for dele, é porque ele bebeu no hospital. O primeiro exame deu negativo, depois recolheram uma amostra nove dias depois do acidente. O primeiro sangue foi recolhido quando o deputado foi atendido no local. Esse sangue que foi tirado lá, no local, simplesmente desapareceu. Tentaram inventar um racha. Alguém estaria atrás do deputado para impedi-lo de correr. Sumiu tudo do carro dele. A polícia disse que houve um arrastão, furto, mas a mim me entregaram boné do meu filho, documentos, carteira com dinheiro. Enquanto eu chorava a morte do meu filho, os advogados do deputado recolhiam a fita da filmagem do posto de gasolina próximo, só esqueceram que o filme ficava no hd (disco rígido). É uma soma de fatores assustadores. Parece coisa de filme.

O que a senhora espera da Justiça? Christiane – É difícil responder. O que é a justiça do homem? É a conveniente aos poderosos. Eu gostaria que quem cometesse esse tipo de crime fosse punido. E que o governo sempre se empenhasse da mesma maneira. Que os políticos, nossos defensores, fossem realmente nossos defensores. Que um carro não chegasse voando para decepar a cabeça de alguém. Hoje estou plantada na justiça de Deus. Essa não falha. Tudo tem um propósito, está havendo uma comoção nacional, talvez a sociedade acorde para que não se derrame mais o sangue de tantos inocentes. Até quando, senhor? O que nos falta realmente é conscientização.

Mas o que a senhora consideraria uma pena justa neste caso? Christiane – Essa é uma pergunta que não tem como uma mãe responder. O deputado tem alguns privilégios. Não tenho nem como opinar. O que seria uma pena justa para alguém que mata seu filho? Não consigo parar para imaginar o que eu gostaria que acontecesse com ele, estou atordoada e amortecida. A única coisa que eu quero é que ele não fique nas ruas. Porque, se ficar, vai matar de novo. Ele está com o caráter formado. Ele tem que assumir as responsabilidades. Todos nós temos. No sábado, dois dias depois de enterrar meu filho, eu tive que ir para São Paulo, chorando em cima dos doces e do bolo, porque era a minha responsabilidade. Independentemente do que me custasse, ajeitar doce por doce, e fazer a festa de um empresário de São Paulo, porque era meu compromisso. Fiz o que devia fazer, e meu marido e eu voltamos para chorar. Cheirando o casaco do nosso filho.

Vocês já foram ao apartamento dele? Christiane – Não tive coragem. Minha filha foi, desligou computador, desligou gás.

E onde está o que sobrou do carro de seu filho? Christiane – Está na delegacia, como prova do crime. Quem quiser pode ver, pode fotografar. O carro do deputado, ninguém pode chegar perto. Está coberto por uma lona. Por quê?


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