09 março 2010

Para ministro dos Direitos Humanos, crimes da ditadura devem ser reconhecidos e desculpados

Paulo de Tarso Vannuchi - PERDÃO AOS MILITARES

No começo do ano, o ministro Paulo Vannuchi ameaçou pedir demissão por causa da pressão de outros ministros contra o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos.
O documento, que inclui a criação da Comissão da Verdade para apurar torturas e outros abusos cometidos durante a ditadura militar, desagradou principalmente ao ministro da Defesa, Nelson Jobim. Nesta entrevista exclusiva, Vannuchi, que foi preso e torturado, insiste na importância de se apurar os crimes de militares no período, mas, pela primeira vez, se declara favorável ao perdão aos torturadores, que, em outros países da América Latina, foram presos.

1 – Como está a criação da Comissão da Verdade?
Constituímos um grupo de trabalho que está sendo coordenado pela Casa Civil.
Já realizamos duas reuniões e convidamos especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) para falar.
São representantes de 20 comissões criadas em outros países.
Estamos lendo as leis que eles criaram e em março começaremos a redigir um documento.
O Governo terá todo o mês de abril para examinar nossas propostas.

2 – Qual a importância de se apurar o que aconteceu na ditadura militar?
É uma orientação mundial da ONU e da OEA que os Estados reconheçam a responsabilidade por violações praticadas nos regimes ditatoriais.
Em alguns lugares, estes regimes foram depostos por inimigos.
No Brasil houve uma transição lenta, mas é necessário reconhecer a responsabilidade. Precisamos promover a investigação a fundo, a reparação indenizatória e estabelecer políticas oficiais para que isso não se repita.
As primeiras iniciativas neste sentido foram dos governos de Fernando Henrique e Lula.

3 – Governos bem diferentes, não?
Se há uma oposição total entre Fernando Henrique e Lula em tudo mais, em direitos humanos não há.
Trata-se de um procedimento de Estado, não de governo.
Qualquer que seja a alternância de partidos, o trabalho prossegue.
Claro que há diferenças de pensamento. Em um sistema democrático não há pensamento único.

4 – Para Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o golpe foi um “mal necessário”. Que pensa disso?
Essas posições existem e continuarão.
O que não pode é haver dúvidas de que brasileiros morreram e as famílias não tiveram o direito sagrado de sepultá-los. É preciso convencer os que participaram a falar.
Trata-se de completar o processo de redemocratização com a ideia de concórdia.
Quem esteve separado, inclusive na condição de torturado ou torturador, não pode perpetuar o ódio.
Tem que exercer o valor histórico, religioso e também ético, do perdão.

5 – Como assim?
Na África do Sul, aqueles que assumiram as práticas, que pediram desculpas e disseram que aquilo não deveria se repetir, saíram anistiados.
No Brasil, há controvérsias sobre punições e isso o Judiciário resolve.
Na Argentina, Chile e Uruguai, os responsáveis e mandantes foram presos.

6 – Mas sua posição pessoal é de que o militar que assumir violações e der informações deve ser perdoado?
Veja bem, é complexo o tema. Familiares e vítimas com todo direito não querem saber de perdão.
O que eu digo é que a autoridade de direitos humanos que for séria não pode se opor à ideia de reconciliação.
É preciso viver e conviver com a diferença profunda.
A senadora Kátia Abreu (DEM/TO) só fala do programa xingando, com ódio.
Minha atitude nunca será igual. Na democracia temos direito de discordar, com o compromisso de não nos eliminarmos.
O que era arma tem que virar argumento.

7 – Uma mudança de conceitos?
O mundo ainda é de guerra, mas ele tem que ser de paz.
Há correntes pessimistas que acreditam que o golpe de 1964 e a guerra são inevitáveis, um “mal necessário”.
Eu penso que o ser humano tem condições de criar uma humanidade de paz.
Não vejo o perdão como um sentimento negativo.
As Forças Armadas hoje são diferentes.
Desde a redemocratização não há tentativas de golpes. Na Argentina e na Venezuela houve, no Brasil, não.

8 – Mas e grupos como o “Guararapes”, de militares da reserva que defendem intervenções militares?
Eles representam a persistência desse passado.
Não é preciso se assustar e achar que são ameaça porque a vida vai retirando espaço desse discurso.
Esse mundo acabou e eles não conseguem fazer a transição.
Há segmentos que erradamente entendem que a Comissão da Verdade é contra as Forças Armadas. Não é.
No exterior, os comandantes militares que fizeram o processo publicamente ganharam reconhecimento.
É preciso lavar a ferida para cicatrizar. Caso contrário, ela permanece suja e sangra de novo.

9 – Não há riscos? O senador José Sarney (PMDB/AP) escreveu para não soltarmos demônios dos armários.
A democracia é o regime da transparência. Respeito a opinião contrária.
Não vou considerar fascista quem a tenha, mas dentro do armário o demônio faz barulho e ajuda a perpetuar a violência. Se ninguém for exposto, a impunidade leva à repetição.
Países que promoveram debates têm indicadores mais positivos em letalidade policial, tortura e violência nas prisões.
O Brasil tem como abrir armários e reafirmar o espírito de não revanchismo.
O que menos importa é saber se eles vão para a cadeia.

10 – Há policiais que associam direitos humanos à defesa do crime. Como vê isso?
É preciso superar o discurso ultraconservador e preconceituoso do final da ditadura de ver direitos humanos como defesa de bandido e entender que o policial tem que ser visto e se ver como um defensor de direitos humanos.
Ele é uma pessoa que está ali para defender a vida, às vezes até expondo a própria.


daniel.santini@folhauniversal.com.br

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