26 setembro 2010

“Comer, rezar, amar “virou manual das românticas pós-feministas. Um galã brasileiro vem de brinde

Mulher divorciada procura...
A escritora Elizabeth Gilbert chegou à meia-idade com um casamento sem filhos desfeito, seguido de uma paixão que não deu certo e apenas uma certeza: não sabia mais quem ela era. Deixou para trás tudo o que tinha (ou não tinha) e partiu para uma jornada pelo mundo: Itália, Índia e Bali. Ia em busca de um sentido para sua vida. Foi mais longe do que imaginava.

O livro sobre sua experiência, Comer, rezar, amar, vendeu 4 milhões de cópias em todo o mundo. Agora se transformou em um longa-metragem, estrelado por Julia Roberts, que estreou na sexta-feira. O filme, como o livro, é um épico pós-feminista: em busca de equilíbrio espiritual e independência emocional, Elizabeth tira o foco do alvo clichê das mulheres – um grande e seguro amor –, e é aí que o encontra. Não como um objetivo principal, mas como parte daquilo que se chama felicidade.

Escrito em 2006, o livro só se tornou sucesso um ano depois graças ao boca a boca feminino. Mais que isso: virou uma espécie de bíblia feminina da primeira década do século XXI. No filme, as imagens que milhões de mulheres no mundo já imaginaram surgem coloridas e vivas, assim como os vários personagens que a autora conhece em suas viagens. Os alegres italianos, os concentrados indianos e os afetuosos balineses.

A trama fica longa na tela, com mais de duas horas de duração, mas não incomoda. Percebe-se fácil que não é um roteiro original, o que não chega a ser um defeito. A narrativa da protagonista pontua o início da trama, com bons trechos do livro, mas depois desaparece, dando lugar a um olhar mais livre do telespectador. Não deve ter sido proposital, mas faz sentido a ideia de que Elizabeth aos poucos se distancia de seu status de escritora bem-sucedida em Nova York e vai se transformando em “apenas” uma mulher sozinha pelo mundo em busca existencial.

Julia Roberts está bem no papel. O tempo lhe fez bem e acrescentou novas expressões a seu repertório – compensando o volume de Botox que certamente colocou acima do lábio superior e que, no começo do filme, prende o olhar do espectador. Ao longo do filme se despoja e é aí que fica ainda melhor, com as roupas largas, o cabelão preso de qualquer jeito, o gestual mais autêntico. A linda mulher virou uma ótima atriz e, apesar de estrela de Hollywood, funciona como alguém de verdade. Já não se pode dizer o mesmo de seu par no filme, Javier Bardem. Na pele de Felipe, o empresário brasileiro – gaúcho – que Elizabeth conhece em Bali, o ator (que quase sempre acerta) errou a mão desta vez. Talvez o erro tenha sido a escolha de um ator que virou símbolo sexual para encarnar o amor-amigo da protagonista. Diante da tarefa de viver um quarentão doce e sincero, Bardem não conseguiu se despir da canastrice. Para piorar, o ator arrisca algumas frases em português com um sotaque pavoroso, que mais se assemelha ao galego, ao sérvio ou ao russo. Outro escorregão envolve a cultura do país: segundo o filme, beijar os filhos na boca seria um costume dos homens brasileiros. Faltou pesquisa.

OS TRÊS VERBOS
A jornada de Liz (Julia Roberts) inclui uma estada gastronômica em Roma, tardes de amor em Bali com o brasileiro Felipe (Javier Bardem) e meditação na Índia

Apesar das gafes, Comer, rezar, amar promete ser um sucesso de bilheteria a reboque da fama do livro, de Julia Roberts e do sempre irresistível atrativo das buscas femininas – que sustenta a profusão de comédias românticas da indústria cinematográfica. Mas o filme pode decepcionar quem está atrás apenas da fórmula fácil. Apesar de o livro não caber no roteiro e de, afinal, haver um final feliz, a história real de Elizabeth Gilbert difere da busca clichê feminina do parceiro. Porque subverte sua noção daquilo que faz uma mulher feliz. O casamento, a paixão, os relacionamentos haviam destruído a paz da protagonista. No começo da trama, ela era o que se chama de mulher esponja. Embora emancipada e bem-sucedida, ela acabava se tornando cópia dos homens com quem se relacionava, como uma maneira de fazer a relação dar certo. Diante disso, o que ela era se dissipou. Depois do reencontro consigo mesma, ter novamente um relacionamento parecia um retrocesso – e ao telespectador também parece.

Na literatura e no cinema, a jornada do herói costuma estar mais ligada ao mundo masculino. São os homens que tradicionalmente realizam sagas e buscas existenciais, repletas de batalhas, internas e externas, e superação de tragédias e traumas passados. Em Comer, rezar e amar, é uma mulher que cumpre essa jornada, que se torna ainda mais forte com o peso de ser uma história real. Para os homens, o fim da saga é geralmente feito de louros, poder ou dinheiro. Para as mulheres, depois da jornada e da tempestade, a bonança pode ser um homem que a faça feliz – e até atender pelo nome de Javier Bardem. E o melhor é ter toda a liberdade para dizer: e daí?


Martha Mendonça/revistaepoca

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