Em resposta aos leitores de ÉPOCA, a ex-refém das Farc diz por que não pensa em voltar à Colômbia
A vida de Ingrid Betancourt está dividida entre Paris, onde mora o filho, Lorenzo, e Nova York, onde vive a filha, Mélanie.
Ela nunca mais morou na Colômbia desde que foi resgatada pelos militares no meio da selva, em julho de 2008, seis anos e meio depois de sequestrada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Ingrid veio ao Brasil na semana passada para lançar o livro Não há silêncio que não termine, em que narra o sofrimento no cativeiro.
Nesta entrevista, Ingrid revela muita mágoa por ter sido acusada de forçar seu sequestro por motivos eleitorais (era candidata à Presidência na época) ou de ter sido mal-agradecida ao pedir indenização ao Estado.
“Tenho uma ferida com a Colômbia e preciso de tempo para que ela cure”, afirma.
ENTREVISTA - INGRID BETANCOURT
Marcelo Min/Fotogarrafa QUEM É
Nascida em Bogotá, Ingrid Betancourt Pulecio tem 48 anos. Em processo de divórcio, tem dois filhos: Mélanie, de 25 anos, e Lorenzo, de 22
O QUE FEZ
Graduada em ciências políticas, foi deputada e senadora. Em 2002, era candidata à Presidência da Colômbia, quando foi sequestrada pelas Farc
O QUE PUBLICOU
Não há silêncio que não termine (Companhia das Letras)
Qual foi a pior situação que a senhora enfrentou no cativeiro e da qual preferia se esquecer?
Samuel Fellipe Vieira Cruz,
Fortaleza, CE
Ingrid Betancourt – Há situações das quais não vou falar. Sei que não poderei esquecer delas, mas tampouco quero compartilhá-las. Mas de outras eu posso falar.
Entre elas está a morte do meu pai (em 23 de março de 2002, um mês depois de Ingrid ter sido seqüestrada). Soube de uma maneira muito estranha. Chegaram ao acampamento alguns mantimentos envoltos em papel-jornal.
E não nos importou que havia verduras frescas, mas sim o jornal, pois era algo para ler. Pedimos aos guerrilheiros se podíamos ficar com o jornal. E a primeira folha que peguei tinha uma foto de um padre com fotógrafos ao redor.
Havia muita dor no olhar do padre. Comecei a ler a legenda. Dizia que o sacerdote estava incomodado com a atitude dos jornalistas ao redor do caixão de Gabriel Betancourt. E esse era o nome do meu pai (longa pausa). Foi um pesadelo.
Qual era a maior dificuldade diária no cativeiro? A comida, a higiene pessoal ou o contato com os guerrilheiros?
Lara Paiva,
Natal, RN
Ingrid – O contato com os guerrilheiros era o mais difícil. Eles tinham um padrão de comportamento. Mudávamos bastante de acampamento.
Quando um novo grupo de guardas chegava, ocorria uma espécie de “lua de mel”. Era uma semana em que eles eram amáveis, respeitosos e curiosos por saber quem éramos. Mas muito rapidamente, em questão de dias, o comportamento mudava.
Tornavam-se déspotas, violentos. No meu caso, qualquer coisa que eu fizesse podia estar sujeita a uma reação cruel.
Quando chegávamos a um novo acampamento, uma das primeiras coisas era esticar uma corda para poder secar as roupas no sol.
Lembro que os outros reféns podiam pôr suas cordas onde quisessem. Comigo, um guarda nunca me deixava pôr a corda onde houvesse sol, minha roupa nunca secava direito. Havia crueldades muito piores, claro.
Por uns quatro anos me deixaram acorrentada pelo pescoço a uma árvore. E o guarda, se queria tornar minha vida mais difícil, apertava mais a corrente ou a encurtava ao máximo. Aí mal podia falar ou me locomover.
Havia algum tipo de hierarquia entre os reféns? Quem “valia” mais sofria menos?
José de Moura Pedrosa,
João Pessoa
Ingrid – Havia uma hierarquia de duplo sentido. Havia uma hierarquia baseada no que o mundo lá fora proporcionava em relação às informações sobre mim.
Havia um nome sempre presente nas notícias, o meu. Isso gerava muita rejeição, não somente entre os guardas, mas também entre meus companheiros.
Quando meu nome era citado no rádio, alguns reféns desligavam o aparelho e comentavam: “Por acaso ela pensa ser mais importante que nós porque está no noticiário?”
E os guardas me tratavam de uma maneira mais severa, provavelmente também porque tentei escapar muitas vezes. Eles me viam como inimigo, porque fazia política, e ser política na Colômbia é muito negativo.
Para eles, isso era suspeito, além da minha dupla nacionalidade (Ingrid é franco-colombiana). Acho que lhes causava certa angústia o fato de eu ser mulher, de falar vários idiomas, de ter uma educação. Acho que me viam como um perigo, que poderia manipulá-los. E o tratamento era mais duro. No meu caso, eu podia “valer” mais, mas sofria mais também.
Em alguns casos, reféns criam “laços amorosos” com os sequestradores (a síndrome de Estocolmo). Aconteceu com a senhora?
Francisco Calado Barros,
Fortaleza, CE
Ingrid – Não, por vários fatores. Fui sujeita a muitas humilhações.
Chegou um momento em que criei barreiras psicológicas para me proteger. E uma das maneiras para combater a manipulação deles era lembrar a mim mesma e a meus colegas que eles não eram autoridades nem tinham direito de nos sequestrar.
E era nosso direito tentar escapar e buscar a liberdade. Essa minha atitude contrastava com a de outros companheiros. Não houve síndrome de Estocolmo, mas sim uma necessidade de criar laços de confiança com a guerrilha para obter uma vida mais fácil.
E era isso que a guerrilha queria. Ficava claro que alguns prisioneiros recebiam um trato diferencial. Davam-lhes mais espaço, mais comida, medicamentos quando preciso. Não há necessidade de eu apontar quem eram esses prisioneiros.
A senhora teve alguma relação afetiva com outro refém?
Samuel Saraiva,
Porto Velho, RO
Ingrid – Nunca tive relação física com outros reféns, simplesmente porque não se podia.
Éramos vigiados 24 horas por dia, e por muito tempo eu vivi acorrentada, proibida de falar com meus companheiros.
Mas fiz amizades profundas. Até hoje falo com Marc (Gonsalves, americano com quem ela teria tido um relacionamento, segundo outros reféns), Luis Eladio (Pérez, ex-senador colombiano), Pincho (Jhon Pinchao, policial colombiano que fugiu do cativeiro em 2007).
Qual foi a sensação de ver seus filhos, já adultos, quando saiu do cativeiro?
Ana Maria Monteiro,
Belo Horizonte, MG
Ingrid – Não se recupera o tempo jamais, mas o presente é muito intenso e muito belo. Vi meus filhos no dia seguinte à minha libertação.
Eles chegaram da França em um avião e eu os esperei na pista de pouso. E me lembro, primeiro, da minha impaciência, de que se abrisse logo a porta do avião. E quando eu os vi....bem, eu havia sonhado por anos com eles.
E todo ano, a cada aniversário deles, eu tratava de marcar a data e imaginar como eles poderiam estar. Quando Lorenzo fez 14, Mélanie, 17, e 15 e 18, e 16 e 19, e cada ano pensando como poderiam ter se transformado. Obviamente, eu os imaginava muito bonitos.
Mas, quando eu os vi, eram....(longa pausa) muito mais bonitos do que eu poderia imaginar.
O que mudou em sua escala de prioridades após ser resgatada?
Maria Helena Nunes,
Rio de Janeiro, RJ
Ingrid – A família. Cada um tem suas prioridades e seus afetos, mas não estabelece as prioridades de seu tempo de acordo com seus afetos. Hoje em dia, cuido para que meu tempo seja o da minha família, e o resto para os demais.
Minha prioridade é estar em contato com minha mãe (Yolanda), meus filhos, minha irmã (Astrid) e meus outros familiares,
Que tipo de sentimento a senhora tem hoje pelas Farc?
Oberico Barbosa,
Boa Vista, RR
Ingrid – Há muitos tipos de sentimento. Em relação aos guerrilheiros, sinto perdão.
Porque essas pessoas que me detiveram e me vigiaram também são seres humanos. E em todos os seres humanos há um lado bom, de luz, e outro escuro.
Em alguns momentos, saíam deles o “monstro”, talvez por saberem que estavam armados, que tinha o poder de decisão sobre a vida ou a morte, além do fato de não haver testemunhas. E, como havia uma hierarquia, eles podiam usar isso como uma autodesculpa, alegando que estavam apenas seguindo ordens. E a pressão do grupo era muito forte.
Do outro lado, tampouco quero esquecer a mão estendida de alguns, a compaixão e até o carinho de alguns. Por isso, o perdão é natural. Do ponto de vista da organização das Farc, é diferente porque há uma realidade que é importante compartir.
As Farc se apresentam como uma guerrilha obviamente comunista, digamos, com um objetivo de defender os pobres. Eu não vi isso. Vi uma organização que utiliza os pobres, que os chantageia, que os amedronta, que os obriga a estar em suas fileiras e combater para eles. É uma organização de privilégios a serviço do narcotráfico.
Quem chega a ser comandante consegue ter uma multidão de escravos, que são os guerrilheiros rasos, e não vi compaixão, não vi liderança, vi abusos. Eram privilégios na selva, como mais comida, melhores lugares para dormir, melhores roupas, brinquedos, remédios, até computadores. O comunismo é uma retórica.
Enquanto esteve no cativeiro, a senhora escutou algo sobre o vínculo entre as Farc e partidos políticos brasileiros?
Sergio Coutinho,
Maceió, AL
Ingrid – As Farc sempre foram acusadas de ter vínculos privilegiados com Hugo Chávez, com (Rafael) Correa (presidente do Equador), com Lula. Não acredito que seja real.
Primeiro porque não acho que as Farc realmente necessitem de recursos. As Farc têm bastante dinheiro.
Antes do nosso sequestro, é provável que tenham tentado ter alguma diplomacia, digamos, de contatos em âmbito latino-americano e europeu. Penso que, depois de nos sequestrar, as Farc viram muitas portas se fechar.
Um exemplo: O Partido Comunista francês. Quando eu estava sequestrada, eles receberam representantes das Farc em sua conferência anual. Isso, para mim, foi muito doloroso, porque é uma maneira de respaldar atos terroristas.
Depois disso, nunca mais deram assento às Farc. E isso deve ter passado por todos os lados. E acho que hoje em dia as Farc estão muito isoladas.
Ainda há simpatias pelas Farc, mas acho que são individuais. Não creio, por exemplo, que organizações tão sérias, entre outras o partido que está no comando do governo brasileiro, vai se dar o luxo de ter vínculos com terroristas.
A senhora não acha que tenha sido egoísta ou mal-agradecida quando tentou obter indenização do Estado colombiano por causa de seu sequestro?
Gustavo Borghi,
São Paulo, SP
Ingrid – As pessoas podem pensar muitas coisas, mas a realidade é diferente e houve muita manipulação.
Há uma lei na Colômbia que permite às vítimas de terrorismo pedir indenização ao Estado. Disseram aos colombianos que eu estava atacando a Justiça e os soldados que me libertaram. Outros companheiros se valeram dessa mesma lei, mas não foi notícia.
Tentou-se dizer que eu havia sido a responsável pelo meu sequestro, porque isso me faria subir nas pesquisas das eleições presidenciais. E disseram que me haviam prevenido e que o risco foi tomado por minha própria conta, assinando termos de responsabilidade.
Nunca apareceram esses papéis. Como candidata, tinha direito de receber escolta, mas me negaram proteção. Essa reação é fruto do medo do governo de ser responsabilizado pelo meu sequestro. Mas fui muito clara: a única responsabilidade pelo meu sequestro foi das Farc.
Nem o governo nem ninguém podia prever que as Farc teriam a ousadia de montar um bloqueio numa estrada onde havia militares por todos os lados.
Não culpo o governo pelo meu sequestro, mas não aceito que me culpem por ter sido sequestrada.
Sua imagem piorou muito na Colômbia depois da questão da indenização ao Estado. Como o povo reage quando a vê nas ruas?
Antonio Alberto Castro,
São Paulo, SP
Ingrid – Bem, não caminho pelas ruas da Colômbia.
Quando vou à Colômbia, tenho um esquema de segurança muito forte.
Fui só quatro vezes para lá desde a minha libertação, sempre sob forte escolta. Desde que fui libertada, as Farc me assinalaram como “objetivo militar”.
Na Colômbia houve um apedrejamento público em torno de mim. Foi uma reação muito violenta, que para mim foi muito dolorosa.
Acho que nem sequer Pablo Escobar foi tratado como trataram a mim. Nunca vi, nos anos em que ele esteve vivo e depois de sua morte, o ódio, as ofensas, os insultos que se desencadearam contra mim.
A senhora tem ambição de voltar a se candidatar à Presidência de seu país?
Carlos Eugênio da Cruz,
Londrina, PR
Ingrid – Não tenho aspirações políticas. Para mim, segue sendo muito doloroso que os colombianos possam entender que quis ser sequestrada. Onde está a sensibilidade? Tenho uma dor muito forte com a Colômbia. Uma ferida. Preciso de tempo para que essa ferida cure. Enquanto me sentir assim, não posso voltar à Colômbia para fazer política.
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